terça-feira, 26 de julho de 2011

PAULO por Carlito

Inimputabilidade - aprendi essa palavra quando estudava a matéria Direito na Academia Militar das Agulhas Negras. Na prática, vim saber seu significado quando era menino, maloqueiro da Avenida da Paz.

A nossa Avenida era bem tratada. Havia fiscalização da Prefeitura. Todos os dias a Guarda Civil escalava um guarda para vigiar, não permitir depredar o patrimônio publico. O vigilante iniciava seu trabalho às 18 horas e terminava as seis da manhã do outro dia.

Às vezes, era escalado para o serviço um guarda muito cônscio de suas obrigações. Extrapolava em seus deveres proibindo a meninada jogar pedras nas amendoeiras, riscar a calçada para jogar garrafão ou avião, e outras bobagens que para nós eram importantes.

Por conta disso, nós meninos livres da Avenida detestávamos quando aquele guarda, muito certinho, cheio de regras era o escalado para fiscalizar a Avenida.

Ele ficava irado, fulo de raiva quando alguém gritava seu apelido: Guarda Doido.

Certa noite, depois do jantar, saí de casa para uma reunião de nosso time de futebol o Atlântico Futebol Clube. Quando passava na esquina da Travessa Emílio Cardoso, onde hoje é o Restaurante Carne do Sol do Picuí, avistei aquela figura impoluta em pé no coreto, com as mãos para trás segurando o inseparável cassetete. Olhava para os lados em sua nobre missão de vigiar.

Não resisti. Escondi-me atrás de um poste e gritei com todos os pulmões: “Guarda Doido!!” O zeloso guarda ficou nervoso olhando de um lado para outro, movendo a cabeça como se dissesse: “Eu lhe pego”.

Em vez de sair sorrateiramente, achei ótima a molecada e repeti gritando mais alto.

Dessa vez o guarda percebeu de onde vinha a ofensa à sua autoridade. Desceu as escadas do coreto num pulo. Quando percebi que corria em minha direção, dei um pique. Ao passar pela grande e avarandada casa nº 1200, estava o dono, tomando uma fresca e fumando charuto.

Ainda correndo entrei pela portinhola falando: “O Guarda- Doido quer me pegar”, e me intrometi casa à dentro.

Depois voltei devagar. Pela fresta da porta ouvi quando o dono da casa dizia para o brioso guarda: “ Pode deixar eu falo com o pai do menino. Mas menino é isso mesmo seu guarda. Ele só tem responsabilidade de seus atos quando chegar a maioridade.” E ficou de conversa com o guarda.

Assim aprendi que eu era um menino inimputável. Depois de certo tempo o senhor dono da casa entrou, quando me viu conversando com seus filhos na reunião do clube, olhou-me sério: “Respeite o guarda, seu cabra sem-vergonha”. E deu uma boa gargalhada, dizendo que o guarda era maluco.

Esse senhor, alto, meio gordo, de olhar bonachão e alegre, chamava-se Luís Ramalho de Castro. Morador da Avenida da Paz, onde criou seus 11 filhos, junto com dona Bi, sua companheira, sua mulher, seu amor, sua vida.

Seu Luís era o homem dos navios. Trabalhava na Costeira, era com ele qualquer tipo de embarque naval. Em sua enorme e confortável casa gostava de receber os amigos e os amigos de seus filhos. Sua casa era a sede de nosso clube.

Sempre alegre. Nos carnavais Seu Luís um grande folião. Foi Rei Momo da cidade durante alguns anos. Fui seu súdito e fantasiado de vassalo lhe acompanhava no carro alegórico do desfile na Rua do Comércio e nas visitas aos grandes clubes.

Eu tomava conta de suas garrafas de uísque, que acabavam com rapidez, e de suas princesas. A rainha ficava junto ao Rei.

Já Dona Bi era uma severa mãe, os meninos tinham maior obediência. Era rígida, mas sempre com bom humor. Educaram os filhos, todos se formaram, todos deram para gente na vida.

Nesse ano de 2002, a mais velha Suzel está fazendo 80 anos, atestados por uma bela fotografia com a filha, a neta e a bisneta; coisa linda de família. E o mais moço de nome Francisco, o Quico, faz 60 anos. Como se vê num espaço de 20 anos Dona Bi teve 11 filhos. Nem precisava rezar tanto para ir para o céu.

Os mais velhos são amigos queridos de muita convivência. Os dois mais moços: Paulo e Quico não são apenas amigos de infância. Foram também companheiros de juventude, de maturidade e seremos certamente na caducidade. São meus irmãos. Fazem parte de minha família, de minha vida.

Foi com Paulo que tomei meu primeiro porre, juntamente com Lizardo Jardim, compramos uma garrafa de Martini, uma lata de presuntada e bebemo-la toda, até sairmos capengando para casa. Meninos 13 anos.

Éramos parceiros e adversários nas brincadeiras, no futebol de praia, no jogo de botão. Às vezes saía uma briga. Paulo era meio gordinho e não gostava de ser chamado de Paulo Gordo, como ainda alguns amigos o chamam.

Certa vez, Paulo teve um problema de asma. O médico passou como remédio, fumar um certo tipo cigarro. Quando ia visitá-lo ficava com maior inveja: Paulo fumando como um homem. Desejávamos ter a doença de Paulo.

Já rapaz, numa bela manhã de verão, eu esperava a turma para bater bola embaixo de uma frondosa amendoeira na Praia da Avenida. Paulo apareceu feliz, vibrando. Estava namorando a menina dos seus sonhos. Depois de algum tempo ele me apresentou sua Lourdinha no Gramado da Pajuçara.

Surgiu o grande amor de toda a vida de Paulo. Depois de algum tempo de namoro, noivaram, casaram. Veio a alegria da primeira filha Ana Paula e a felicidade do primeiro neto. Era o casal, mais correto, mais feliz. Almas gêmeas. Lourdinha eficiente dona de casa.

Desde que me casei, minha mulher quando tinha dúvida na cozinha, ou decoração, ou qualquer problema de casa, socorria com Lourdinha. Eu a chamava de consultora doméstica.

Lourdinha grande mãe e depois a avó. Até que num amaldiçoado dia aconteceu a tragédia. Um bandido seqüestrou Lourdinha, seu neto e sua irmã quando saiam do pastel Chinês na Pajuçara.

Elas entraram no carro sob a ameaça do revolver do bandido. De repente o cara ficou doido começou a atirar, quando apontou o revólver para o menino, Lourdinha se abraçou, protegeu o neto, mas o tiro foi fatal. A morte de Lourdinha foi a grande tragédia, a grande violência de nossa geração, ainda hoje está marcada, o tiro atingiu também a todos nós e cravou para o resto da vida dentro, no âmago de Paulo.

Lourdinha tornou-se a heroína de nossa geração, deu a vida pelo neto. Se é que isso pode suavizar o sofrimento, o padecimento.

Superar essa tragédia é muito difícil para Paulo, embora seja um homem forte. Tem uma fé inabalável que o enche de esperança de um dia haver um reencontro, seja como ou onde for.

Paulo ainda tem seus filhos e seu neto, sua alegria, a continuação da vida. Estamos chegando também no nosso dia, todos temos um dia certo. Eu não quero nem saber. Enquanto não chega esse dia, vamos vivendo o que melhor da vida nos trás.

Quando podemos nos encontramos, Paulo Gordo há muito tempo que é magro, corre todos os dias no mínimo 12 km, e toma, todas as semanas, suas cervejas. Apesar de tudo, não morreu para o mundo.

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