sábado, 30 de julho de 2011

INFÂNCIA QUERIDA QUE OS ANOS NÃO TRAZEM MAIS por Carlito

Nasci e me criei na Praia da Avenida da Paz, quase às margens plácidas do Riacho Salgadinho, numa bela manhã de verão alagoano do 27 de fevereiro de 40, bem perto do carnaval.

D. Zeca, minha mãe uma doce, alegre e bela criatura. Morena, filha de dono de engenho, teve a felicidade de ter 31 irmãos legítimos e alguns bastardos.

Meu avô materno José Vieira Peixoto, primo-irmão do Marechal Floriano Peixoto registrou 15 filhos com a primeira mulher e 17 com a segunda, minha Avó América, mais nova que as 4 primeiras filhas. E ainda pai de vários tios nos engenhos da vida.

D. Zeca, uma das inteligências mais cintilantes que conheci, tinha pouco estudo, o que era normal para uma mulher, na época. Foi uma dama que irradiava alegria, a mulher mais festeira, mais alegre que convivi. Suas tiradas, seus comentários eram sempre inteligentes, de um fino e debochado humor.

Já meu pai um pouco sisudo, para quem não conhecia de perto, era um militar, Capitão do Exercito quando nasci. Tinha um coração e uma coragem imensurável.

Capitão Mario Lima, o herói da revolução de 1932 em São Paulo. Nos campos de batalha arrastou um soldado e um coronel feridos para a trincheira em pleno e generalizado tiroteio, as balas zuniam matando e ferindo soldados, mesmo assim saiu de sua trincheira e trouxe rastejando, arrastando os dois feridos.

Em 43, por conta desse ato heróico o então General Newton Cavalcante, alagoano da Palmeira dos Índios, grato ao Capitão Mario Lima por ter salvado sua vida, o convidou para ser Ajudante De Ordem do General no Rio de Janeiro.

Lá se foi toda família. Do Rio pouca coisa ficou gravada em minha memória. Lembro apenas, de balões enormes que soltavam onde morávamos, Rua Fernando Laboriaux na Tijuca; o nascimento de meu irmão Américo, que logo tomou o apelido de Lelé, nome do mais famoso jogador da época do Vasco campeão de 44-45. Tenho vagas lembranças de uma grande festa, a chegada dos pracinhas da 2ªGuerra Mundial no Rio, numa sala no Ministério da Guerra, jogava papel picado do alto do prédio nos pracinhas que desfilavam.

Outra tênue lembrança do Rio daquela época, foi a arrumação das malas para embarcarmos no Itanajé, navio da Costeira, rumo à Maceió, onde meu pai conseguiu sua transferência em 1946 e passou quase toda sua vida profissional no 20° Batalhão de Caçadores, unidade da Infantaria do Exercito de Maceió.

Quando aportarmos no cais de Maceió, fiquei deslumbrado com a vista do mar azul-esverdeado de uma luminosidade intensa; ao longe a praia e o casario da Avenida da Paz. É uma imagem ainda nítida e permanente que ficou para o resto da vida. Vou levá-la comigo, está impregnada em minha mente e em meu coração. Maceió foi meu primeiro caso de amor.

Menino ainda, aprendi a nadar, e amar aquela praia extensa, areia dura, branca e fina, e um mar que não tem tamanho de um azul esverdeado. Esse o cenário, o palco de uma infância feliz, menino seminu, dono do mar e das areias da Praia da Avenida.

Os moradores da Avenida da Paz eram a classe média-alta e rica daquele tempo, a fina flor, a elite econômica, social e intelectual.

Mas nós crianças éramos democratas com nossas amizades com os meninos moleques freqüentadores da praia, jogando juntos futebol na areia, nadando nas águas límpidas e transparentes.

Em Jaraguá, defronte aos casarões, onde as damas da vida vendiam seu corpo acolhendo os boêmios e marinheiros, havia trapiches fincados na área da praia, estendendo-se mar adentro, com bases em palafitas de troncos grossos. Na ponta, no final, um galpão de madeira, com duas águas de telhados de zinco, armazenava mercadorias, onde atracavam as balsas para transportar sacos de açúcar para os navios fundeados.

O cais de Maceió não comportava muitos navios, eram precisos trapiches para embarcarem o açúcar produzido nas usinas alagoanas.

Os maloqueiros da praia nadavam ate o trapiche, subiam pelas palafitas, chegavam aos telhados. Equilibrando-se no telhado de zinco quente, se tinha uma deslumbrante vista da enseada da praia da Avenida. Lá de cima os meninos se jogavam com o corpo esticado em livres mergulhos, uma deliciosa caricia no peito, no ventre, até o impacto com a cabeça na água límpida e cristalina.

Certo dia um menino, 12 anos, se jogou, e ali ficou, a maré estava baixa, foi imprudente, uma tristeza a retirada do corpo. A partir desse dia ficou proibido o salto do trapiche, não só pela direção do Cais do Porto, como também por nossos pais.

Mas éramos livres para obedecer, logo estávamos de novo a saltar da cumeeira, o lugar mais alto. E quando de repente aparecia o vigia; todos pulavam para o mar e nadando a molecada cantava gritando e uníssono: O galo canta....... o macaco assobia....... banana de jegue.... no cu do vigia!!!! O vigia era um velhinho abusado, chegou a prender alguns dos campeões de salto ao mar, modalidade única no esporte mundial, praticado apenas pelos maloqueiros da praia da Avenida da Paz nos anos 50.

Tempos de pós-guerra, criatividade de menino ilimitada, inventamos a guerra nas trincheiras de praia. A meninada dividida em 2 Exércitos para batalha, ninguém queria ser o alemão. Cada lado cavava sua trincheira na areia, no buraco cabiam 5 a 6 “soldados”.

Fabricava a munição na hora: bola de areia molhada endurecida com areia seca. Jogava as bolas duras nos adversários, apenas pelo prazer de acertá-las no rosto dos inimigos. Acabava a brincadeira ao anoitecer com um ataque à trincheira inimiga. Os Exércitos se atracavam, porrada dos dois lados, nunca havia vencedor.

O futebol na areia era o jogo o predileto, às vezes com campeonato organizados, juiz, traves e medalhas aos vencedores, terminava sempre em briga, ninguém respeitava o juiz. O jogo continuava até o anoitecer, até o gol da Lua, o ultimo gol, depois da Lua aparecer.

Ficou famoso o futebol de Perrelli, uma família de italianos, meus vizinhos Fernando, Betinho e Rafael, organizavam uma pelada aos domingos com trave, camisa e juiz. Era o mais famoso futebol de praia de Maceió. Várias gerações jogaram na pelada dos Perrelli, acabou nos anos 80 com a poluição do Salgadinho e a conseqüente poluição da Praia da Avenida.

Em certo dia, Warren Lima, meu primo um pouco mais velho, chegou alegre festejando com uma bandeirinha o campeonato carioca ganho pelo Fluminense. Participei da alegria e a partir desse dia, tornei-me tricolor do coração, uma de minhas paixões, quase irracional que me deu muita alegria. Devo esse meu amor ao tricolor ao grande Warren, que hoje vive nas mansas praias de Niterói.

Estudei o primário e secundário no Colégio Diocesano (Marista). Minhas aulas eram pela manhã. À tarde estudava o mínimo suficiente, fazia os deveres de casa, e saía em busca de brincadeiras e aventuras. Era gostoso pescar no Riacho Salgadinho quando a maré enchia. Empurrava uma jangada de tronco de bananeira para o meio do Rio, apenas um remo, de lá jogava a tarrafa aberta e bonita, enchia tainhas e carapebas.

Com uma tetéia e isca presa era só arrastar os siris de todo tamanho, os menores retornava ao Riacho. Sem saber, já havia consciência ecológica na meninada. À noite D. Zeca fritava aqueles peixes vindo do Salgadinho ou das redes dos amigos pescadores que deixavam os meninos pegarem as miuçalhas (peixe pequeno), uma delicia frito na manteiga.

Nas margens e imediações do Salgadinho, por ser terra salobra, lama salgada, se prestava à vivência, ao “habitat” de caranguejos, principalmente o goiamum azulado. Com lata quadrada de óleo ou azeite, nós fabricávamos as “ratoeiras” para capturá-los. Armava, com as tampas levantadas e uma isca no fundo. Colocava na saída do buraco, o caranguejo ao beliscar a isca fechava a “ratoeira”. Uma vibração, uma felicidade, quando a gente via a “ratoeira” com a tampa fachada e um baita goiamum preso.

No viveiro, um engradado feito de tiras de ripas de madeira, cevava engordava os caranguejos. Dias depois uma farra e caranguejada com os amigos, o caldo do gordo goiamum escorria pela boca, uma delicia.

Com peteca (atiradeira) a meninada brincava de Guerra de Mamona. Dividia a em 2 Exércitos, em torno de 5 soldados pra cada lado, por trás dos postes atirava com a peteca mamona no adversário, era a guerra. Certa vez levei uma mamona no olho esquerdo, uma dor terrível, fiquei 3 dias sem enxergar, sem poder abrir o olho.

Na época dos bons ventos, a molecada soltava “raia” (pipa-papagaio). Na praia, as raias eram empinadas com linha de cera e vidro para cortar, derrubar a do vizinho. O céu ficava de um colorido alegre cheio de raias de todas as cores. Meu irmão Betuca sempre foi um artista, fabricava as raias mais bonitas, lembro de uma enorme, com a bandeira do Brasil, foi uma sensação na praia, na avenida, na rua, todos que passavam olhavam encantados aquela boniteza de brincadeira de criança, balançando cheia de vitalidade de um lado para o outro, imponente, era a bandeira do Brasil, meninos, idolatrávamos esse país.

Bom mesmo era ximbra (bola de gude). “Lente” era o cara de boa pontaria. Eu vivia jogando e ganhando, tinha caixa de ximbra em casa, meus bolsos eram cheios para jogar nos intervalos no Colégio e à noite na Avenida. Havia vários tipos de jogos; triangulo e buraco meus prediletos.

Já no pião era um caos, sempre perdendo. Depois de jogar, o vitorioso tinha direito de, com o próprio pião amarrado com a enfieira, tentar com a ponta do pião quebrar o casco do pião adversário. Perdi muitos piões, até alguns que mandei fazer de goiabeira. Mas só o rodar o pião colocar na mão e vê-lo zunir, já deixava a gente feliz.

“O meu pião é feito de goiabeira... ele só roda com a ponteira... na palma de minha mão... dança morena.. no meio desse salão...requebrando o corpo todo.... no ronco desse pião.. roda pião... roda pião... roda pião...”

À noite o calçadão da Avenida da Paz se transformava em palco e campo de jogos. Correr no “Roubar-Bandeira”, jogo interessante. Dividia a calçada em 2 campos, um para cada equipe de 5 ou 6 menino(as), no final de cada campo colocava uma bandeira. O objetivo era entrar pelo campo adversário pegar a bandeira fincada e trazer para o próprio campo sem ser tocado pelo adversário. Quando alguém era tocado pelo adversário tinha que parar ficar imóvel até um amigo vir e tocar de novo, “soltar” o amigo. Ganhava quem trouxesse primeiro a bandeira do adversário pro seu campo. É um jogo de astúcia, velocidade e jogo de corpo.

Os mais fortes, mais parrudos se davam bem no “gata – parida’”. Um jogo de empurra nos bancos da avenida, onde cabiam 5 pessoas, sentavam apertados 7 meninos, e no empurra – empurra pelo corpo, os mais fracos são expelidos, até restar apenas um, o vitorioso que conseguiu expelir, à força, seus adversários para fora do banco.

Luís Gutemberg, grande jornalista e analista político alagoano, companheiro amigo de juventude de Maceió, hoje radicado em Brasília, escritor, romancista, tem um de seus livros, o titulo de “O Jogo da Gata Parida”, onde conta a briga de grupos pelo poder, a competição dos generais na sucessão presidencial, nos anos 70.

Além dos jogos coletivos tinham os esportes, as brincadeiras individuais. Os patins quando deixava a velocidade e a leveza tomar conta do corpo, deslizando feliz nas calçadas da cidade.

De bicicleta, bati todos os caminhos de Maceió, sem destino, atrás de namoradas, às vezes atrás de empregadas nas vizinhanças, em busca de aventuras.

Já mais grandinho subia a ladeira do Farol, para reunião da UCPM, uma associação de amigos daquele formoso e chique bairro, era a famosa União dos Conquistadores de Piniqueira de Maceió, onde os associados tinham promoção conforme conquistas das pininiqueiras (empregadas domésticas). Cheguei como soldado, nunca passei de tenente. Só 2 associados chegaram a general, hoje um deles é Ministro de um egrégio Tribunal de Justiça em Brasília e outro um político de grande influência no Estado de Alagoas.

Os moradores da Avenida, depois do jantar, colocavam cadeiras nas calçadas para “tomar uma fresca”, conversar. Os temas mais comuns eram: a política e a vida alheia. Às 10 horas em ponto recolhiam as cadeiras, mandavam os meninos entrarem, era hora de dormir, terminava a noite.

A Avenida da Paz ficava deserta, via-se apenas alguns boêmios se dirigindo aos lupanares de Jaraguá em busca de emoções e distração com as raparigas. Programa restrito aos adultos, só para homens. Mas não podiam proibir os sonhos, as fantasias dos meninos.

Foi assim a infância romântica e até ingênua dos anos 50 na cidade de Maceió, na praia da Avenida.

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