terça-feira, 20 de maio de 2014

CARLOS FERNANDO, MEU AMIGO DO PEITO por Lelé

ESSE TEXTO FAZ PARTE DO LIVRO "BANHO DE CHEIRO - CARLOS FERNANDO EM PEQUENAS DOSES" LANÇADO EM JANEIRO/2014 EM HOMENAGEM AO COMPOSITOR PERNAMBUCANO MORTO EM SETEMBRO DO ANO PASSADO.



1 - PRIMEIRO BOTECO

Décio Valença, Mago Henrique, Velho Albérico e Lelé.  Cursamos engenharia elétrica na UFPE. A formatura foi em 1968 e no começo do ano seguinte, partimos para um pós-graduação em Telecomunicações na COPPE – UFRJ.  Com Mané Messias, irmão de Carlos Fernando, alugamos um apartamento na Av. N.S. de Copacabana, perto da Praça do Lido.

 Até então não o conhecia pessoalmente. O que sabíamos sobre Carlos Fernando ouvimos nas histórias contadas por Mané - ele morava em São Paulo, sem trabalho e era o compositor de AQUELA ROSA, interpretada pela conterrânea Teca Calazans. 
Um dia atendi a porta do apartamento e um boi corneta com uma mala de couro forrada com pano forte brim cáqui me diz:
- Você é o Lelé, né? Sou Carlos Fernando. Vim passar minhas férias aqui...
 -Férias de quê? Perguntei com ironia.   
                                                                                                                                                            Seu Fernando me olhou com um sorriso matreiro, compartilhando a piada de si mesmo, e entrou distribuindo cumprimentos informais. 
Pouco depois já estávamos como velhos amigos, bebericando no Tio Paco, boteco que ficava pertinho do nosso apartamento, na Rua Prado Júnior.  
Foi um momento tão marcante que me lembro até do roteiro gastronômico - batida de limão e caldinho de feijão preparados pelo tio gente boa pra abrir os serviços.  Dia sim e o outro também, lá estávamos, no Tio Paco. Como no final do filme Casablanca, que adorávamos assistir: foi o começo de uma grande amizade.


2 - APARELHO

Aquelas férias duraram meses. Dignas de nossos magistrados. O espaço não era problema. Aquele apartamento foi o primeiro de tantos que vieram depois e abrigavam nordestinos imigrantes, sufocados pela falta de perspectiva na terra natal. De certa forma, todos a procura de um novo caminho. Com o tempo, o pequeno ninho dos errantes navegantes cresceu, ganhou notoriedade e passou a integrar a Republica dos Pernambucanos, como definia o jornalista Carlinhos de Oliveira, nosso eterno vizinho de mesa de bar.  Era como ele descrevia a turma de boêmios nordestinos em sua crônica semanal. Uma insubordinada boemia imigrante que entre outras atividades consideradas ilegais na época, costumava abrir os braços para os perseguidos políticos. 

Era o AI-5 apertando o cerco.

Lembramos esses fatos hoje, meio perplexos com a nossa ingenuidade - abrigar revolucionários, num ambiente tão movimentado, um entra e sai de conterrâneos o dia todo. Em cada apartamento que ocupávamos, muitas histórias. No primeiro, meu pai, general aposentado do Exército, e morando em Maceió, durante uma visita de alguns dias, dormiu numa cama de casal ao lado de um perseguido político. Um quadro surreal. Depois da anistia, encontrei o nosso amigo guerrilheiro e recordamos o fato. O nome dele é Carlos Alberto Muniz, na época dirigente do MR-8, procuradíssimo, mas na redemocratização do país chegou a vice-prefeito do Rio. 
Foi nessa esculhambação organizada que nosso querido Carlos Fernando nos encontrou. Depois alugamos um apartamento na Rua Barata Ribeiro com a Siqueira Campos, em Copacabana.  Foi quando Alceu Valença chegou de Recife, à procura de seu espaço musical e foi morar conosco. Inclusive ele deu várias entrevistas referindo-se a esse apartamento como APARELHO. Lá, costumávamos receber Nego Luiz( Luiz José da Cunha), guerrilheiro da ALN, diretamente ligado a Marighella            ( claro que não sabíamos ). Era uma pessoa tão próxima que tinha até a chave do apartamento. Carlos Fernando também freqUentava nosso “aparelho”, mas com menos constância.  

Um dia, reunidos na sala, seu Fernando e Alceu, tocando violão, e eu estudando, entra no apartamento Nego Luiz pálido, todo suado, com um trabuco na mão. Ficamos paralisados, trocando olhares e com o fiofó torando o maior aço por um bom tempo até Carlos Fernando quebrar o gelo:
 - “Vige, que o nego virou Branca de Neve! Levou carreira da polícia?”
Óbvio. Só que de uma polícia assustadoramente sanguinária.

Nego Luiz foi assassinado pela ditadura em julho de 1973, em São Paulo, com 27 anos. Foi uma das pessoas mais bonitas que conheci em toda minha vida. Adorado pelos amigos.

3 - ATEU PRATICANTE

Nessa época, Carlos Fernando e eu namorávamos duas irmãs naturais de Ouro Preto. 
Gente muito boa. Família acolhedora. Costumávamos passar os fins de semana e feriados na bela cidade histórica. Na pindaíba, não fazíamos cerimônia – hospedávamo-nos na casa dos familiares delas. Era uma farra. A serenata ia noite adentro.  

Durante a madrugada, a caminho da casa das meninas, percorríamos as igrejas da cidade. 
Numa das nossas caminhadas no alvorecer de Ouro Preto, nos surpreendemos com uma cena inusitada - um frade executando Tocata em Fuga, num antigo cravo. Divino. O ambiente valorizava a interpretação de uma forma mágica.  Os dois, caniados, numa atmosfera barroca, de tamanha religiosidade.  
Altares e púlpitos dourados. Aquela música - a emoção transbordou. Lágrimas desceram pelo rosto.  Carlos Fernando surtou:
- Bentivi, como às vezes me chamava, você ouviu essas vozes do céu???
Como bons ateus praticantes, nos olhamos cabreiros, e caímos na maior gargalhada.
- Yo no creo en brujos, pero que los hay, los hay, falei. 

Pouco tempo depois, terminamos o namoro com as mineiras.  Passei a namorar a irmã da minha ex, que tinha sido a namorada de Carlos Fernando.
Fiel ao perfil sacana de botar apelidos, Carlos Fernando passou a me chamar de Teorema, porque nesse filme de Pasolini, o ator Terence Stamp traçava toda a família.

4 - ACONCHEGO DO CIDADÃO

 Em 1972 mudamo-nos todos para o novo porto seguro, o binômio Ipanema – Leblon. 
Já estávamos mais ambientados com os bares da região graças ao nosso mestre Wilson Lira, amigo de infância de Mané e Carlos Fernando em Caruaru.

Casado com Olga, o cidadão Wilson Aranha, como também era conhecido, apelido dado por um guardador de carro devido sua cabeleira parecer uma teia, morava num apartamento térreo – num prédio de poucos andares – no Leblon. A República dos nordestinos desprotegidos ganhava mais uma sucursal. Inexoravelmente todos os fins de semana a negrada lá se encontrava. O casal recebia a todos como irmãos, e assim nos tornamos. Era uma forte amizade celebrada entre goles de biritas e um tira gosto tipicamente nordestino.

Foi ali que Alceu Valença conheceu Geraldinho Azevedo, e juntos, começaram a fazer o projeto do primeiro LP, lançamento da musica Talismã.

A essa altura Já tínhamos até encontrado um novo ponto da turma do nordeste – o  Bar DEGRAU, na Rua Ataulfo de Paiva, que até hoje nos espera com aquele Tornedor à Francesa de fazer qualquer um comer ajoelhado. Na época, o Degrau ficava num outro endereço – exatamente em frente ao prédio onde funciona o bar atualmente.
No antigo endereço, subíamos uma escadinha para chegar à porta de entrada do bar, daí o nome Degrau.     

Era tarde de um dia qualquer. Carlos Fernando, Mago Henrique, Mané Messias e eu, bebíamos, falando quase aos sussurros para, propositadamente despertar suspeitas. Sabíamos que agentes da repressão costumavam se infiltrar entre as mesas da boemia carioca e a idéia era tirar sarro com qualquer um deles que estivesse por perto naquele momento. Enquanto nos divertíamos com a armação, Tom Jobim entrou no Degrau e foi em direção à mesa de Haroldo Barbosa.
- Haroldinho, olhe o que fiz agora – e cantou: É pau, é pedra, é o fim do caminho / É um resto de toco, é um pouco sozinho...
Carlos Fernando com uma sensibilidade musical incomum comentou:
- Isso é que é uma música da gota. É um gênio, mesmo!

 5 - PÁ DE CAL

 O cerco da repressão cada vez mais apertado e frequente entre as mesas dos bares da zona sul do Rio  e a reação irreverente da boemia carioca inspiraram Alceu a compor CABELOS LONGOS. Nós, os irreverentes imigrantes que enfrentavam a repressão a golpes de boas gargalhadas, usávamos cabelões. Até o cidadão Wilson Aranha, exibia um pixaim que o tornava uma figura única numa multidão.  Era o nosso Tim Maia. E começamos a perceber que os tiras para não levantar suspeitas, também deixaram os cabelos crescerem. 
 “ Eu desconfio dos cabelos longos / De sua cabeça / Se você deixou crescer/ de um ano prá cá...” Respondia Alceu à altura.

O cerco da ditadura se fechava... Prenderam Mané Messias. Levaram também Carlos Fernando e Moro que tinham pouco a ver com luta armada ou coisas do gênero. Depois de algumas bordoadas foram liberados.  Mané e a namorada na época, Solange Bastos enfrentaram uma barra pesada da Polícia do Exército. 

Velho Albérico e eu já trabalhávamos na Embratel e morávamos num apartamento  da rua Gomes Carneiro, em Ipanema. O velho estava prá banda de Mato Grosso a trabalho quando Carlos Fernando nos procurou dizendo que tinha um recado urgente para ele:
- Diga ao Velho que tome Formicida Tatu! Mandou dizer Mané da prisão.

Eu tinha certeza que o Mané era ligado à resistência armada, mas o Albérico, nunca.
 Nem desconfiava. Depois soube que era um dos principais elos entre as ALN do Rio e São Paulo. Fui imediatamente pra sede da Embratel, no Rio e num canal exclusivo falei com ele. Abandonou a Embratel e se picou para a Bahia onde o irmão Geraldo morava. Depois de alguns meses, nós dois – Geraldo e eu levamos o Velho Albérico de carro para Assunção. Atravessar a ponte da Amizade, repleta de milico, foi um sufoco, o maior sobrosso que tive na vida. Torada de aço, mesmo! 

Mané e Solange depois de soltos foram para o Chile. Carlos Fernando de pronto profetizou:
- Mané Messias é o maior derrubador de governo, desde que foi secretário de Miguel Arraes. Você vai ver, Bentivi, a última democracia da América Latina vai cair. Allende que se cuide.

E foi mesmo o que aconteceu. Uma das últimas esperanças daqueles tempos sombrios virava um pesadelo...

6 - E LA NAVE VA

Ipanema, final de 1974. Eu ao lado de Beth, carregando João, nosso filho mais velho no ventre, participamos de uma farra danada à beira mar. Foi o lançamento do LP e show MOLHADO DE SUOR do Alceu Valença. A republica pernambucana compareceu 


em peso.  A idéia era fazer um tremendo auê para promover o disco - panfletagem na praia e na feira de Ipanema, com direito até a registro e entrevista da Globo no bar Veloso. Alceu com um megafone e cavalete nas costas, foi um espetáculo à parte. O teatro lotou. 

Foi o começo da bem sucedida carreira de Alceu. Com ele a nova cultura musical nordestina numa feliz parceria com Geraldo Azevedo e Carlos Fernando. 

Foi também o canto do cisne de um ciclo, criativamente falando, bastante fecundo na zona sul carioca. De certa forma, cada um de nós incorporou pra sempre um pouquinho daquele estado de espírito ( “ Eu sou daqui/ Mas vim de longe”...).

Eu começava a pegar a estrada de volta. Em direção onde tudo desabrochou – o nordeste. Em Maceió eu iria gerenciar o distrito da Embratel.

7 - PRIMEIRO ASAS DA AMERICA 

Foram tempos de muito trabalho. Eu, diante de um novo desafio em Maceió, mais administrativo do que técnico, a minha praia até então. Carlos Fernando, no Rio, compondo, produzindo shows.  Os encontros ficaram menos freqüentes, porém nunca nos perdemos de vista.  Por telefone ou sabendo notícias através de amigos, estávamos sempre atualizados nos acontecimentos. 

Apesar do corre-corre do trabalho, sempre que Carlos Fernando vinha ao nordeste, dava um jeitinho de fazer uma escala em Maceió para botar o papo em dia.
Numa dessas curtas temporadas, veio com Nanda, sua mulher. Dessa vez, a escala em Maceió não seria só pra matar a saudade de velhos amigos, tinha compromissos profissionais também, com o lançamento do primeiro disco Asas da America. 


Beth era editora e repórter da TV Gazeta de Alagoas, afiliada da Rede Globo. Fez uma reportagem especial sobre o disco. Foi o maior sucesso. Pertinho do carnaval, lembro que O HOMEM DA MEIA-NOITE tocava em tudo que era biboca.

Foi uma escala bastante produtiva. O casal gostava de praia e aproveitou bastante as belezas do litoral alagoano. Programa de índio pra Alceu. Ele não gosta de praia. Dizia que se fosse prefeito mandaria cimentar toda a faixa de areia. Seu Fernando, Deciorum e eu, freqüentadores assíduos do Posto 9 em Ipanema, ficávamos indignados.
- Alceu só dá um mergulho no mar se salgarem o Rio Una, que corta São Bento, no interior de Pernambuco onde ele nasceu, dizia Carlos Fernando. 

 8 - O CONTADOR DE ESTÓRIAS

Voltamos a morar no Rio em 1986. Aí retornamos nosso convívio regular com os velhos amigos. A casa de Pendotiba, Niterói, de Carlos Fernando era um de nossos pontos de encontro. Lá moravam também os pais de Nanda, gente muito boa. Consideravam seu Fernando como verdadeiro filho. Tanto que quando houve a separação, os pais de Nanda continuaram a morar com ele.
Além do bar Degrau, outro ponto de encontro, era uma casa que comprei em Itacuruçá, litoral sul do Rio de Janeiro.  Joana e Manuela, filhas de Carlos Fernando regulavam a idade com minha caçula, Maria. 

Mais um bom motivo para manter as nossas farras em dia. 
Da varanda da casa tínhamos uma vista privilegiada da Baía de Sepetiba. Quando caía a noite, era onde biritávamos com os amigos ao som de boa música e de um céu estrelado sinalizando mais um dia ensolarado a caminho. Era nesse cenário que nos divertíamos com o duelo de estórias entre Carlos Fernando e Wilson Lira. Ali Caruaru era esmiuçada em todos os seus personagens. João Cotó, Lorró, Mamão e Picica com seu bordão: “Seu delegado, não ando na linha porque senão o trem me pega”. 
Uma Macondo mais agitada, nos relatos dos dois. 

 Os Beatles, para desespero do cidadão Wilson, costumava encerrar os nossos encontros nas noites de Itacuruçá.
 -  Bentivi, você me ensinou a gostar dos Beatles. Viva Lennon. Viva Lucy and Sky with Diamonds, berrava seu Fernando.
 Ângela, a caseira, sempre antenada nas estórias de Carlos Fernando, um dia perguntou:
- O seu Fernando, como ela o chamava, e eu adotei, escreve livros, né?
- Não, ele é compositor. Faz musica. Sabe BANHO DE CHEIRO que está tocando muito nas Rádios? Ele é o autor. Por que, Ângela?
- Porque ele só vive contando estórias doidas e engraçadas. Me parecia que era contador de estória.

Nunca perguntei, mas acho que era como ele gostaria de ser chamado – seu Fernando, o contador de estória...

9 – GRATIA PLENA / GUAXUMA LINDA

 Agora, aposentado há mais de dez anos, e morando numa praia perto de Maceió, Guaxuma, recebi algumas vezes seu Fernando. Passou algumas férias nesse paraíso.

 Três anos atrás recebo dele o disco PESSOAS – 3 GERALDOS, que inclui a musica GUAXUMA, dedicada a toda nossa família. Ficamos imensamente gratos e emocionados - “com a boca da gente Roxa, roxinha...”. Era o jeito sedutor de Carlos Fernando. Sempre cativando o amigo.


E assim passaram os dias que sobre a terra nos foi concedido. Como disse um dos nossos gurus: tenho um beijo preso na garganta. Até mais ver, seu Fernando.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

FOTOS ENCONTRO 9-MAIO-2014 FENIX por Lelé

ENCONTRO NO RESTAURANTE DA FENIX DIA 9-5-14, COMEMORANDO O ANIVERSÁRIO DE ALBERTÃO. COMPARECERAM:
ALBERTO CARDOSO, GUILHERME, CUCA, QUICO, PAULO, TÁCITO SILVEIRA, LELÉ, SERGIO NOBRE, TINHO, RICARDO PEIXOTO, EURICO,







FOTOS ENCONTRO de 8 / maio/14 aniv. Albertão - GUAXUMA por Lelé

Barraca Gurgury - GUAXUMA- 8-maio-14  

  72 anos de Alberto Cardoso , com Lelé, Adilson (Cuica) e Toinho Bode Creiroso