terça-feira, 12 de maio de 2009

AS ÁGUAS DE 1949 por Carlito Lima


A chuva intensa nesse inverno nordestino fez-me voltar à infância. O ano, 1949, era um menino, nove anos, fiquei assustado com relâmpagos e trovoadas, me alegrava apenas lembrar dos caranguejos, eles saem do buraco com trovões, naquele dia eu havia colocado “ratoeiras” feita de lata de óleo em algumas tocas de goiamuns nas margens do Riacho Salgadinho. Durante a madrugada houve um temporal diluviano. O Salgadinho transbordou, encheu a Rua Silvério Jorge, onde eu morava, e adjacências. As grandes chuvas previstas para maio estavam acontecendo no final de abril.

À noite uma enxurrada desceu do Tabuleiro com muita velocidade, passando pelo bairro do Farol com um barulho aterrador de água em grande movimento. A aluvião avançou como se fosse uma onda desgovernada atropelando o que encontrava pela frente, carros, carroças, derrubou árvores. Quando a enxurrada se intensificou na descida do Farol, na Rua Barão de Anadia, perto fábrica de Guaraná Davino, aconteceu um forte estrondo, rompeu um enorme bloco de barro, desprendido da barreira caiu por trás das casas daquela rua. Tragédia, 20 residências soterradas, mais de 50 mortos.

No leito do vale do Riacho Reginaldo–Salgadinho a correnteza da água de chuva, volumosa e insustentável como um enorme vagalhão, levava o que havia pela frente em seu corredor. Na foz, no desembocar, onde o riacho deságua na Avenida da Paz, a enxurrada chegou tão forte que partiu ao meio a ponte de concreto da avenida. A ponte desmoronou, foi arrastada em dois blocos à beira-mar.

No vão, onde estava a ponte sobre o Salgadinho, ficaram apenas trilhos dos velhos bondes pregados em seus dormentes. O bonde era o transporte urbano mais usado naquela época.

Quando o dia amanheceu puderam-se avaliar os estragos da catástrofe, daquela chuva de volume nunca visto. Curiosos, usuários do bonde para o trabalho, ficaram estarrecidos, contemplando as conseqüências da água violenta naquela madrugada.

Pela manhã já se sabia pela da catástrofe pela Rádio Difusora, a enxurrada havia derrubado a ponte da Avenida. A Rádio anunciou a suspensão das aulas; depois do café da manhã, corri atrás de minhas “ratoeiras”, não encontrei uma sequer, em alguns locais estavam submersas. Andei até a praia, entrei no Hotel Atlântico, de uma privilegiada posição fiquei contemplando emocionado o vão da ponte apenas com os dormentes do bonde balançando.

Dois enormes blocos de concretos à beira-mar, lavados pelas ondas, como se fossem rochas naturais. Dois pedaços de ponte. Fiquei encantado com os trilhos pregados no dormente, resistindo numa linha curva, o que restou da tragédia. Esses mesmos trilhos serviram como base, construíram imediatamente uma ponte de pedestre provisória para usuários dos bondes atravessarem fazendo baldeação da linha Vergel do Lago - Ponta da Terra e vice versa. Os bondes paravam na cabeceira da ponte, os passageiros recebiam um tíquete, atravessavam a ponte improvisada, tomavam outro bonde que os levavam ao destino. Carros, caminhões e ônibus seguiam seu destino de Ponta da Terra para o Centro, arrodeando via bairro do Poço. Por conta disso, em Maceió, quando uma pessoa percorre um percurso maior que o previsto, ou faz muita delonga para contar alguma história, diz-se estar caminhando via Poço.

A meninada inocente e traquina até gostou da tragédia, apareceu mais outro divertimento. Todo dia nós acompanhávamos, encantados, as obras de engenharia, construção da nova ponte do Salgadinho. Da cabeceira descíamos, ficávamos por baixo da ponte de pedestre improvisada, em local estratégico, apreciando o desfile das calcinhas das meninas, das mulheres que atravessavam distraídas.

Com a construção de uma ponte de madeira provisória na Rua Silvério Jorge, o trânsito voltou ao normal na região da orla. Não gostamos, a rua ficou com trânsito intenso, tirou o bucolismo. A nova ponte de madeira acabou com nossa tranqüilidade e com o divertimento de apreciar as pernas das meninas por baixo da ponte.

Foi rápida a construção da nova ponte de concreto, logo inaugurada com muito estardalhaço. Quatro anos depois, Luzia, embaixo dessa mesma ponte do Salgadinho, tirou minha inocência, meus cabrestos.

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