sábado, 5 de janeiro de 2008

O LIDER (EMILIO) por Lelé

Quer me fazer feliz? Empreste um gibi pra eu ler. Luluzinha e a turma do Bolinha está entre as minhas revistas preferidas. A turma do Bolinha me leva a nossa infância na Avenida e não consigo dissociar a personagem principal do nosso saudoso amigo Emilio Cardoso. Apesar da aparência totalmente diferente, a personalidade de líder, aventureiro, protetor, amante platônico é muito semelhante. Como o Bolinha, qualquer acontecimento tinha que passar necessariamente por ele. A idéia podia ser de outro, mas Emílio era quem a tornava realizável. Tomar banho no Catolé ou no rio Jacarecica, passar fim de semana na casa da tia Jú em Santa Luzia do Norte ou no sítio de seu Bemon em Urucu. Quem decidia onde, quando e como era ele.

Lente na ximbra. O melhor no pião. No rouba bandeira ou no garrafão, todos queriam ficar do lado dele. Principalmente na trincheira, ninguém queria Emílio como inimigo. Esta brincadeira onde se cavava dois grandes buracos feitos trincheiras, distantes cerca de 10 metros, até encontrar água, para poder fazer um bolo duro juntando com a areia fina, é uma invenção do pessoal da Avenida. Ficavam três ou quatro meninos por buraco, procurando atingir os inimigos no outro buraco. Emilio com aquela altura e habilidade era temido por todos. Lembro que eu certa vez estava cobrindo um ataque dele à trincheira inimiga quando levei uma bolada do Quico no quengo que desmaiei. Brincadeirinha dócil, hein?


Vivemos muitas histórias juntos. Jogávamos futebol frequentemente no campo da casa do Lelo. Um dia D.Maristela mandou o Lelo estudar e pediu a gente que saísse para não atrapalhar o estudo do filho. Não adiantava argumentar. Jogar naquele campo era um direito nosso. Saímos indignados. A idéia foi minha. Uma parte do muro atrás do campo tinha sido refeita recentemente, ainda estava secando. Emilio bolou a estratégia para derrubarmos esta parte do muro. De manhã faríamos uma corda com cipó de guajuru, plantação abundante atrás do muro, e a noite iríamos lá, derrubar o pedaço dele com a corda. Depois voltaríamos correndo para o banco da avenida para não causar suspeitas. Fizemos exatamente isto, só que em vez de parte, veio o muro inteiro abaixo. Com o susto deixamos a corda de cipó na plantação. Não havia nenhuma dúvida dos responsáveis pelo desabamento. D. Maristela foi a cada uma de nossa mãe, Zeca, Santina e Beth, dizendo que o filho dela era um bom menino, mas quando se juntava com os outros dois maloqueiros, ficava influenciado e se não tomasse cuidado iria se tornar um moleque também. Pior é que ficamos sem jogar no nosso campinho predileto por um tempão.

Uma outra idéia partiu do Cuca. Não sei como ele descobriu, mas sabia que os presentes de natal da casa do Lelo estavam guardados no sótão. Emilio traçou a estratégia para a gente entrar no sótão e trocar os nomes dos presenteados para o nosso nome. Tínhamos que fazer isto de madrugada. Subimos no telhado da casa do Eurico, conseguimos abrir a janela da frente do sótão, e começamos a mudar os nomes dos presentes para Lelé, Cuca e Emilio. A família era tão generosa que havia presentes com nosso nome. Mas éramos tão sacanas que trocamos os nossos nomes com os da família, supondo que os presentes destinados a gente deveriam ser piores que os dos familiares. E assim no dia de Natal, a Tia Elza, vestida de Papai Noel, surpresa, entregou mais presentes pra gente do que para os filhos e sobrinhos. Que maldade. Bando de canalhinhas. E tem gente aí dizendo que toda criança é pura, não tem maldade. Esses caras não tiveram infância.

Emilhão gostava de apelidar pessoas, principalmente as que não achava simpáticas. Mas também dava muitos apelidos carinhosos, de amizade. Só me chamava de neguinho. Desconfio que foi ele quem apelidou PC Farias de Paulo Gasolina. Certa vez, estávamos passeando na camionete do Ricardo Peixoto, com o Paulo César na boléia, e atrás na carroceria, Emilio, Eurico e eu. De repente aparece uma viatura dos guardas de trânsito. Ricardo sem carteira percebeu e acelerou. Foi uma perseguição digna de filme policial americano. Emilio começou a mostrar o dedo pros guardas, claro que acompanhei meu líder, acrescentando banana além de dedo. Sempre exagerei na dose. Continuo até hoje, principalmente quando é uma boa cachacinha. Bem, Ricardão livrou-se dos guardas na praça Sinimbu, e voltamos para a mansão dos Peixoto. Menos de dez minutos depois chegaram os guardas lá. Dona Zélia recebeu-os.
O Zarôlho, conhecido nosso por usar óculos de fundo de garrafa, falou:
- Seu filho de menor estava em alta velocidade pelas ruas da cidade, colocando em perigo os transeuntes. E atrás da camionete tinha um molequezinho dando banana pra gente.
- O senhor é um irresponsável. Não tem vergonha de estimular uma criança a dirigir correndo no transito? E o molequezinho que você está chamando é filho do Coronel Mário Lima. Se ele souber que o filho dele está sendo desrespeitado por vocês...
Os guardas botaram a viola no saco e se mandaram. Mãe é mãe, em qualquer época e lugar do mundo.


Emilio tinha espírito de comandante, gostava mesmo era de mandar. Estávamos consertando um barco no Hotel Atlântico. Mardem Melé pregando umas tábuas ajudado pelo Tonho. O resto do grupo sentado na calçada dando palpite. Até que Emilio falou que Melé estava pregando as tábuas de forma totalmente errada. Mardem se emputeceu e gaguejou:
- To-tome a-a-aqui e-e-esta me-merda de ma-ma-mar-te-telo. Não pre-pre-go mais po-porra nenhuma. E-e-esse na-navio vai a-a-afundar. Tem po-poucos ma-mari-rinheiros e mui-mui-muitos a-a-almi-mi-rantes.

Num domingo saímos nós dois para caçar no sítio de seu Ribemon Uchôa, pai do Euricão, em Urucu, lugarejo de Novo Lino. Fomos de ônibus de Recife e voltaríamos no FNM do seu Bemon. Pedimos ao motorista para parar o pinga-pinga em Urucu, mas o filho de uma égua passou direto. Quando demos por fé estávamos em Pernambuco. Foi aquela discussão com o motorista, cada um com uma espingarda na mão. Emilhão ameaçando o cara. A gente liso, sem um tostão. Ele disse que a única coisa que poderia fazer era levar a gente até Recife. Chegamos no começo da tarde na rodoviária antiga. Rosita, minha irmã, morava no Prado, e fomos até lá a pé. Só na Conde da Boa Vista andamos mais de uma hora, com as merdas das espingardas nas costas. Quem passava pela gente olhava como dissesse “que é que é isso?”. Com uma fome da gota, almoçamos na casa da Zita, e João Carlos nos levou de volta para rodoviária. Só pudemos pegar o último ônibus. Pior é que seu Bemon, meu vizinho, já tinha retornado pra casa. Aí mãe Zeca enlouqueceu. Resumindo, quando chegamos já a noitona, tinha uma verdadeira multidão nos esperando, assistindo aqueles dois caras lisas descerem do ônibus.

Um outro momento inesquecível foi quando estávamos batendo papo no coreto. Eu confessei que estava apaixonado por uma menina, e não estava conseguindo me declarar. Para minha surpresa, pois era dificílimo tirar alguma revelação sentimental do Emilio, ele me confessou, sob minha jura de morte, que era apaixonadíssimo por uma garota há muito tempo, e nunca teve coragem de se declarar. Creio que ele levou este amor platônica pra o túmulo. Lembro-me de a gente ter comentado “se fosse com o Alberto”.

O irmão mais velho dele era o nosso guru. Alberto Cardoso era nosso referencial para tudo. Foi ele inclusive que me trouxe pelo braço para a esquerda, embora eu seja gauche na vida de nascença. Nossa admiração por Albertão era tanta, que uma das coisas mais importante para um adolescente, escolher a profissão, teve a influência dele também: Engenheiro Eletricista. Emilio, inteligente mas um pouco malandro no estudo, largou o projeto. Eu era mais aplicado e perseverante. Cheguei lá. Minha formatura em Elétrica, na Escola de Engenharia da Universidade Federal de Pernambuco, a mesma de Alberto, foi no dia 23 de dezembro de 1968. Dez dias após o AI5. Naquele dia os milicos cercaram a Escola na hora da formatura. No meu lado tinha uma cadeira vazia. Vazia pro resto do mundo. Pra mim estava Emilhão ali sentado, com a mão no meu ombro, protegendo o irmão por adoção, como sempre.

Hoje ele é nome de rua em Maceió. Travessa Emilio Cardoso Filho, esquina com a Avenida da Paz. O beco mais querido no mundo pelos meninos da Avenida.

( Lelé – outubro 2007)

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