terça-feira, 24 de abril de 2012

Simplesmente, para assuntar: - uma presunção imune ao passado por Murillo Mendes



Não sei, mas os tempos, hoje, estão mudados; supinamente enviesados, desviados, seguindo outras rotas, sem contenção, fugidios dos freios e das cautelas do passado; convertendo-se em libertinos (?)... Não! Na realidade, não são tempos essencialmente libertinos, que não me compraz a possível ofensa; mas, inquestionavelmente, tempos libertos, em sua mais ampla acepção vernacular e ideológica. Que resulta disso, desses tempos simbiônticos, dessas associações que se fazem destemperadas e temerárias ao olho e aos sentires adstritos aos que “já eram”?

            Lembro-me, com naturalidade, como algo do meu passado que não se foi, que me integra, que é parte viva e indissociável do meu eu, do tempo em que desfrutávamos a bela e inigualável praia da Avenida da Paz. Do branco neve de suas refinadas areias, da limpidez de suas águas mornas – espelho autêntico do céu imenso que as cobria, colorido-as em tons ora azuis, ora verdes, sempre puras, exuberantes e saudáveis, oferecidas a todos nós que as procurávamos.

            Eram tempos de traquinadas indômitas, mas inocentes, quase sempre; tão ao feitio dos que, então, mal se iniciavam na adolescência. Das excursões curiosas e pacíficas – ou incursões (?) – ao famigerado Morro Tomix que, do Sobral, ao longe, nos alvoroçava, desafiando-nos...  Pois bem, deixávamos nossas “nevadas” areias, a limpidez das águas da Avenida e marchávamos, sem o conhecimento e sem a autorização de nossos pais, para ocupar o ousado morro de brancas areias, às vezes compurscadas por rala e espinhosa vegetação a desenhar-lhe figuras que iriam povoar nossa ingênua imaginação, estimulando-nos à aventura.

            Antes da lá chegarmos, ultrapassávamos o marco final da Avenida – o Clube Fênix Alagoana, defronte ao qual nossa bucólica praia assumia fisionomia de indisposição e de ferocidade com seus possíveis banhistas, mercê de suas piscinas submersas, perigosas e trágicas; na realidade, traidores buracos, afetados por fortes e invisíveis correntes marinhas que, convertidas em redemoinhos, não davam chances aos incautos usuários. Depois de atravessarmos a originária foz do Riacho Salgadinho (que, naquela época, se encontrava naturalmente com o mar, bem perto do nosso desafiante morro), a ele chagávamos.

Logo tomávamos posse desse elevado reduto e dele tirávamos as vantagens de infantes conquistadores. Nele, esquiávamos sem cansaço, equipados com tibacas de coqueiro, até que chegasse a hora de voltamos para casa. Esses cangaços eram nossos improvisados esquis. Naquele tempo, embora traquinas, tínhamos limites... e os respeitávamos, quase sempre. Nossos pais, sempre, foram nossos espelhos, e nós, neles, nos refletíamos. Sempre que os contrariávamos, pagávamos, como devido, o preço da insurreição.

            Ocorre, todavia, que éramos para além do conhecimento de nossos pais... Também, exímios armadores e navegadores intimoratos. Fazíamos nossos barcos, utilizando madeira de caixões de cebola, de sabão e de querosene (naquela época, cebola era encaixotada), e do pano de saco que acondicionava a farinha de trigo (naquele tempo, gente pobre dele se vestia)... Construíamos sua quilha com a madeira desses caixotes, guarnecendo-a com o tecido dos sacos, calafetando-os e pintando-os com piche; às vezes, amenizado por resto de coloridas tintas ao nosso eventual dispor. Navegávamos o salgadinho nos dois sentidos. A montante, até as proximidades da Cacimba do Braga (hoje, um posto de gasolina), passando pela ilha das cobras e por baixo da ponte do trem na Buarque de Macedo. A jusante, marginando os sítios da viúva e do Aguiar, ultrapassávamos a ponte da Sinimbu, sob o passar dos saudosos bondes da CFLNB, indo em frente, costeando os paredões da Fênix (naquele tempo não havia, ainda, o seu ginásio, nem seu parque aquático) até a sua foz.

            Éramos “bambas”, porquanto jamais tivemos um naufrágio, jamais houve vítima dessas inebriantes aventuras. Entre os armadores/navegantes não houve náufragos, todos os que, ainda, não se foram, chamados pela natural e incontornável volúpia da morte, estando vivos, poderão atestar a veracidade desse relato, inclusive de nossa apreensão e inconformidade com os fazeres e dizeres sem fronteiras e sem disciplina, imperantes nos dias atuais.

            Toda essa lúdica digressão, para exaltar os filhos que fomos, sempre dóceis com os pais, para dizer que os tempos, realmente, são outros. Em alguns casos, lastimavelmente, sem limites e sem amenidades; ríspidos e acres com o viver e ser com responsabilidade. Primordialmente, quando o injustiçado é sobejamente conhecido. Por essa injustiça, tão cortante, que agride e desconhece a própria presunção “juris tantum” que deve prevalecer e militar em favor de quem não se conhece; pelo menos, até prova em contrário...

Resta-nos, apenas, lastimar, Valendo-nos, para tanto, do grande Cícero, para exclamar: – Oh tempora, oh mores!

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