










PINTO DA MADRUGADA: 26 de Fevereiro de 2011
Jaraguá, porto e mar. A enseada um ancoradouro natural, onde tudo começou. Navios fundeados desembarcavam mercadorias, aventureiros, escravos, comerciantes, marinheiros. A economia da província plantou-se naquele bairro de belos casarões avarandados com balaustradas de ferro em desenhos arabescos, construídos para moradia no andar superior e comércio no térreo. Marinheiros vindos de todos os lugares do mundo movimentaram o local, os arredores do porto se transformaram em bares e biroscas. As famílias se mudaram para outros bairros, os casarões foram transformados em boates e bordéis, onde as serviçais do amor moraram, trabalharam por mais de 70 anos, conservando, mesmo involuntariamente, aquele acervo arquitetônico e histórico, hoje preservado, transformado em área cultural da cidade.
Jaraguá de minha infância querida que os anos não trazem mais. Menino, aprendi a andar nas areias duras da praia da Avenida, aprendi a nadar mergulhando no mar brando, cor indefinida entre azul e verde. Nas noites frescas a meninada tomava conta do calçadão da Avenida da Paz, corria no rouba – bandeira, empurrava no jogo da gata parida, patins e bicicletas faziam a festa. Às 10 da noite a criançada se recolhia, avenida vazia, apenas alguns homens passavam em busca de aventuras nas boates, nos casarões.
Adolescência seminua, pelada de futebol, pesca no Riacho Salgadinho, saltos livres da ponte junto ao belíssimo Hotel Atlântico. À noite os gatos pardos em busca de aventuras depois do namoro comportado na porta da casa. Da namorada apenas beijos roubados ou abraços descuidados. Puberdade, juventude. Excitava a imaginação a fantasiar os instintos. Curiosidade enorme em conhecer, em olhar as boates, os cabarés de chamativas fachadas coloridas em gás néon: Tabaris, Nigth and Day, Alhambra, São Jorge, nós curiosos meninos ouvíamos histórias, contadas pelos mais velhos, de prostitutas bonitas importadas da Europa, França e Bahia. Até que um dia os meninos da Avenida subiram as escadas dos casarões.
Jaraguá dos divertidos roubos de coco nos sítios sem medo da espingarda de sal do vigia, da feira aos sábados, Praça Rayol cheia de poesia de Murilo Mendes. Jaraguá da arborizada Praça 13 de Maio que um dia foi violentada construindo o prédio do SESC, um órgão tão rico, surrupiou da comunidade uma preciosa área verde, a Praça 13 de Maio. Jaraguá dos carnavais saudosos. Sábado de Zé Pereira pela manhã começavam as visitas aos vizinhos tomando laco-paco de maracujá, à noite o grande baile do Jaraguá Tênis Clube iniciava o carnaval de clubes, feliz burguesia. Tênis Clube, onde se jogava também um bom basquete, voleibol, entretanto, predominava o tênis, o mais charmoso dos esportes. Dei minhas raquetadas nas quadras do clube. Assisti gente boa jogar, Zé Elias, Daniel Berard, Maria Esther de saiote branco.
Certo dia, final dos anos 60, a esposa de grande autoridade ao passar, às seis da matina, pelo corredor de boates, surpreendeu um boêmio retardatário fazendo xixi no meio-fio. Em casa exigiu, o marido deu prazo de 60 dias, transferência de todas as boates de Jaraguá para o Canaã. A determinação foi cumprida. Sem os cabarés começaram as derrubadas insanas dos antigos casarões, construindo horríveis prédios modernos. Um grupo de artistas e intelectuais chamou a atenção até que o bairro de Jaraguá foi tombado, ninguém pode mais derrubar qualquer prédio. Em 1991 durante a visita do presidente Fernando Collor a Alagoas, a Associação dos Amigos da Avenida da Paz pediu ao presidente a despoluição do Salgadinho e a restauração do bairro de Jaraguá. Dois meses depois, os projetos estavam prontos, entretanto, a recuperação do bairro foi efetuada anos depois pelos prefeitos Ronaldo e Kátia.
O mundo mudou, não sou saudosista, gosto da vida atual, embora o passado tenha sido mais romântico, mais charmoso. Desde que me tornei escritor aos 62 anos tenho escrito sobre meu bairro. Contar histórias de minha terra tornou-se profissão.
Por todo relato acima, pela luta, pela querência ao bairro, o presidente da Liga dos Blocos Carnavalescos, Edberto Ticianelli, em uma cerimônia festiva e bem humorada nas escadarias da Associação Comercial, deu-me o título de Duque de Jaraguá, o qual uso em apodo ao meu nome nos escritos.
No próximo sábado, 5 de fevereiro, o Jaraguá Tênis Clube realizará o tradicional baile pré carnavalesco Vermelho e Preto, o tema, uma homenagem à Jaraguá, suas máscaras, seus bordéis, e também ao Duque de Jaraguá. Essa ousadia cultural da Diretoria do Tênis,RETRATO EM PRETO E BRANCO DE UM AMIGO COLORIDO
SEU BEMON
Final dos anos 50, chegavam novos moradores na casa Villa Olinda, Silvério Jorge, 274, que pertencia a Ezequias da Rocha e estava sendo ocupada antes pela família Baltazar Mendonça. Nossos amigos Mourinha e Duduca foram morar em Recife.
Em frente à casa dos nossos novos vizinhos um caminhão fenemê estacionava, e dele descia da boléia com dificuldade um homem gordo com jeito bonachão, sorrindo abertamente para aquele pivete neguinho curioso e desconfiado encostado no muro da casa. Foi admiração à primeira vista. Até hoje guardo aquela feição franca e amiga de Ribemont Uchoa, o seu Bemon.
Com ele chegaram a mulher Eurídice e os filhos Eurico,
da minha idade, e as meninas Kátia, Deise e Valéria e a casa tornou-se mais um abrigo para os meninos da avenida.
No coreto que ficava embaixo de um frondoso pé de manga espada, com parte da copa da árvore dando pra nossa casa, de vez em quando nos reuníamos, para tomar as nossas primeiras cachacinhas acompanhadas por um extraordinário sarapatel preparado por Dona Eurídice.
Costumávamos também depenar no quintal da casa os caprinos que roubávamos alhures, sempre sob a supervisão técnica e gastronômica do mestre Ribemont. Não se podia perder um pingo de sangue tirado do cangote do bicho para o preparo da buchada. Mais combustível na farra.
A família tinha um sítio em Urucu, na beira da BR para Recife, um pouco antes de Colônia. Quando o FNM, ferramenta principal dos negócios de seu Bemon, ficava disponível nos finais de semana, era uma festa para os meninos viajar na carroceria do caminhão.
Perto da casa do sítio tinha um riacho onde tomávamos banho, bebendo o laco-paco - cachaça, maracujá e mel de abelha, preparado com carinho por Ribemont, Ele passava meia hora sacudindo a mistura numa garrafa, como se fosse um liquificador. E dali a pouco a gente sabia que haveria uma galinha de capoeira ou um tatu pra traçar. Como dizia Emilio: vida arretada...
O trabalho de seu Bemon ficou menos intenso por causa do diabetes e problemas coronários. Começou a levar uma rotina mais caseira, em vez de andar por esse mundão afora montado no seu FNM, uma vida que escolheu e adorava.
Assim ficou sendo obrigatória a sua presença todas as noites na calçada da Villa Olinda. Virava a cadeira ao contrário e sentava debruçado no encosto da cadeira, olhando sempre em direção ao beco, hoje chamado Emilio Cardoso, espiando para o infinito. Botava um radinho de pilha de lado e ficava escutando o clube dos 11 de Brizola, esse sim, o cara pra Ribemont.
Naquela época, eu acostumava estudar para o vestibular no salão de frente de nossa casa, geralmente depois de namorar ou peniquerar. Estudava até de madrugada, e vez em quando, da janela espiava seu Bemon olhando pro céu e eu gritava que chegava já.
Me esperava com pedaços de cana caiana de primeira qualidade, cultivada no quintal. Cortava os roletes com uma peixeira afiada. Ficávamos chupando aquela doçura, ouvindo Brizola e jogando conversa fora. Neguinho, como carinhosamente me chamava, esse Brasil vai mudar para melhor, acreditava aquele homem que conhecia todo o país na boléia de um caminhão. Foi um relacionamento tão rico naquela fase de minha vida que ficou gravado para sempre na minha memória não volátil.
Já morando em Recife, fazendo engenharia, encontrei na Avenida Boa Viagem Mariozinho Leão que me deu de pronto a triste notícia do falecimento de seu Bemon. A imagem do gordo bonachão me veio à mente.
Quando Vadinho chega do céu, Dona Flor pergunta como era Deus. “Ele é gordo”, responde Vadinho. Minha teoria é que Jorge Amado tem razão. Para fazer uma criatura como a mulher o Todo Poderoso jamais poderia ser um magrinho, raquítico, a base de dieta. A mulher seria muito insossa. Para criar essa maravilha toda que conhecemos como mulher, a imagem do Todo Poderoso, pra esse ateu praticante, tem que ser a de um Gordo e Bonachão, assim como seu Ribemont.
Na época, menino de esquerda metido a poeta, lembro que com os olhos em lágrimas cometi o poema QUE PENA:
Ribemont morreu
De olhar pro céu.
Aí, Jucyra, morreu também.
Foi de saudade.
Que pena,
Jucyra morreu.
Não sei de onde tirei Jucyra. Hoje desconfio que seja algum pedacinho de minhas entranhas. Porém tenho certeza absoluta de uma coisa. Ribemont, com aquele coração tamanho de um fenemê, está espiando os meninos da avenida, daquele lugar pra onde ele tanto gostava de olhar.