RETRATO EM PRETO E BRANCO DE UM AMIGO COLORIDO
SEU BEMON
Final dos anos 50, chegavam novos moradores na casa Villa Olinda, Silvério Jorge, 274, que pertencia a Ezequias da Rocha e estava sendo ocupada antes pela família Baltazar Mendonça. Nossos amigos Mourinha e Duduca foram morar em Recife.
Em frente à casa dos nossos novos vizinhos um caminhão fenemê estacionava, e dele descia da boléia com dificuldade um homem gordo com jeito bonachão, sorrindo abertamente para aquele pivete neguinho curioso e desconfiado encostado no muro da casa. Foi admiração à primeira vista. Até hoje guardo aquela feição franca e amiga de Ribemont Uchoa, o seu Bemon.
Com ele chegaram a mulher Eurídice e os filhos Eurico,
da minha idade, e as meninas Kátia, Deise e Valéria e a casa tornou-se mais um abrigo para os meninos da avenida.
No coreto que ficava embaixo de um frondoso pé de manga espada, com parte da copa da árvore dando pra nossa casa, de vez em quando nos reuníamos, para tomar as nossas primeiras cachacinhas acompanhadas por um extraordinário sarapatel preparado por Dona Eurídice.
Costumávamos também depenar no quintal da casa os caprinos que roubávamos alhures, sempre sob a supervisão técnica e gastronômica do mestre Ribemont. Não se podia perder um pingo de sangue tirado do cangote do bicho para o preparo da buchada. Mais combustível na farra.
A família tinha um sítio em Urucu, na beira da BR para Recife, um pouco antes de Colônia. Quando o FNM, ferramenta principal dos negócios de seu Bemon, ficava disponível nos finais de semana, era uma festa para os meninos viajar na carroceria do caminhão.
Perto da casa do sítio tinha um riacho onde tomávamos banho, bebendo o laco-paco - cachaça, maracujá e mel de abelha, preparado com carinho por Ribemont, Ele passava meia hora sacudindo a mistura numa garrafa, como se fosse um liquificador. E dali a pouco a gente sabia que haveria uma galinha de capoeira ou um tatu pra traçar. Como dizia Emilio: vida arretada...
O trabalho de seu Bemon ficou menos intenso por causa do diabetes e problemas coronários. Começou a levar uma rotina mais caseira, em vez de andar por esse mundão afora montado no seu FNM, uma vida que escolheu e adorava.
Assim ficou sendo obrigatória a sua presença todas as noites na calçada da Villa Olinda. Virava a cadeira ao contrário e sentava debruçado no encosto da cadeira, olhando sempre em direção ao beco, hoje chamado Emilio Cardoso, espiando para o infinito. Botava um radinho de pilha de lado e ficava escutando o clube dos 11 de Brizola, esse sim, o cara pra Ribemont.
Naquela época, eu acostumava estudar para o vestibular no salão de frente de nossa casa, geralmente depois de namorar ou peniquerar. Estudava até de madrugada, e vez em quando, da janela espiava seu Bemon olhando pro céu e eu gritava que chegava já.
Me esperava com pedaços de cana caiana de primeira qualidade, cultivada no quintal. Cortava os roletes com uma peixeira afiada. Ficávamos chupando aquela doçura, ouvindo Brizola e jogando conversa fora. Neguinho, como carinhosamente me chamava, esse Brasil vai mudar para melhor, acreditava aquele homem que conhecia todo o país na boléia de um caminhão. Foi um relacionamento tão rico naquela fase de minha vida que ficou gravado para sempre na minha memória não volátil.
Já morando em Recife, fazendo engenharia, encontrei na Avenida Boa Viagem Mariozinho Leão que me deu de pronto a triste notícia do falecimento de seu Bemon. A imagem do gordo bonachão me veio à mente.
Quando Vadinho chega do céu, Dona Flor pergunta como era Deus. “Ele é gordo”, responde Vadinho. Minha teoria é que Jorge Amado tem razão. Para fazer uma criatura como a mulher o Todo Poderoso jamais poderia ser um magrinho, raquítico, a base de dieta. A mulher seria muito insossa. Para criar essa maravilha toda que conhecemos como mulher, a imagem do Todo Poderoso, pra esse ateu praticante, tem que ser a de um Gordo e Bonachão, assim como seu Ribemont.
Na época, menino de esquerda metido a poeta, lembro que com os olhos em lágrimas cometi o poema QUE PENA:
Ribemont morreu
De olhar pro céu.
Aí, Jucyra, morreu também.
Foi de saudade.
Que pena,
Jucyra morreu.
Não sei de onde tirei Jucyra. Hoje desconfio que seja algum pedacinho de minhas entranhas. Porém tenho certeza absoluta de uma coisa. Ribemont, com aquele coração tamanho de um fenemê, está espiando os meninos da avenida, daquele lugar pra onde ele tanto gostava de olhar.
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