RIO DE JANEIRO
DESLUMBRANTE
Era 1965. Estudávamos o
2o. ano de engenharia elétrica na Universidade de Pernambuco. Nas férias do meio do ano fomos curtir o
Rio de Janeiro. Três dias de ônibus Maceió-Rio. Nas malas de couro forradas com
pano forte e brim cáqui levávamos bastante ansiedade pela perspectiva de encantamento
que aquela cidade maravilhosa viria nos oferecer. Cleves Calado e eu ficamos
alojados no apartamento térreo de meus tios, irmãos de minha mãe, solteirões
convictos, maravilhosos. O prédio ficava vizinho à sede náutica do Vasco da
Gama, à beira da lagoa Rodrigo de Freitas, no bairro de Jardim Botânico. Lugar
ideal para aqueles adolescentes que queriam descobrir o avanço comportamental
daquela juventude que só conhecíamos pelas notícias dos jornais.
Participamos de tudo que
tínhamos direito. Soltos na buraqueira. Nos shows, despontavam uma nova leva de
artistas que modificariam a MPB, Nara, Bethânia, Chico, Elis, Caetano para
sempre. Nas praias, os primeiros momentos do frescobol e a liberdade desnuda
daquela fauna que não costumávamos ver na praia da Avenida, em Maceió. No cinema
Payssandú, as discussões histéricas da esquerda festiva. Nas festinhas de
apartamento conhecendo a naturalidade como consumiam o fuminho. No teatro, a
estreia da peça ARENA CONTA ZUMBI, de Boal, Guarnieri e musicada por Edu Lobo, que
nos deu canções clássicas como Upa, Neguinho, Zambi e Tempo de Guerra.
Eu e Cleves, unha e carne
em Recife, fazendo Escola de Engenharia, como até hoje numa amizade pra ninguém
botar defeito, nos perguntamos por que nós, alagoanos da gema, não conhecíamos
o Morro mais famoso da resistência dos negros diante à escravidão? A Serra da
Barriga onde os quilombolas resistiram durante um século, e ficava só a algumas
dezenas de quilômetro de Maceió.
A EXPEDIÇÃO
De volta à terrinha nossa
primeira providência foi começar a organizar uma expedição para a Serra em
União dos Palmares, Cidade ao norte de Maceió, cerca de 80 km. , para as
próximas férias do final do ano. Onze amigos toparam a parada, todos com idade
em torno de 20 anos, a maioria morava na Praça Sinimbu, vizinhos dos Meninos da
Avenida.
Colhemos informações
sobre a Serra, Mata fechada de difícil acesso, mas que no cume dava para avistar
toda a área. Esse detalhe foi que ajudou a resistência do povo liderado por
Ganga Zumba, a não deixar as tropas do governo alcançarem o povoado com cerca
de 15 mil casas, até a chegada da tropa exterminadora do sanguinário
bandeirante Domingos Jorge Velho, que matou em uma emboscada o então líder
Zumbi, em 20 de novembro de 1695. A informação mais surpreendente que colhemos
foi a existência de um pequeno Lago no topo do Morro, onde relatos garantiam
que estava afundada uma fortuna em
objetos jogados pelos negros na ocasião da ocupação da Serra pelas tropas
governamentais.
Além da aventura que
fazia parte de nossa índole juvenil, nosso propósito precípuo foi o de ficar
rico com os objetos antigos da nação Zumbi. O nosso trunfo nessa empreitada era
o amigo André Simon, o mais experiente mergulhador da turma, embora quase todos
praticassem o mergulho nos mares e lagoas de Maceió. Carregamos todos os apetrechos
para resgatar as riquezas que tínhamos imaginados nas nossas conversas
frequentes e principalmente nos nossos sonhos juvenis.
O meio mais usado para
chegar à União dos Palmares era por trem. Era a linha Maceió-Recife, via União,
Catende e Palmares, o trem cantado por Ascenso Ferreira "vou danado pra
Catende, vou danado pra Catende, com vontade de chegar...". Ficamos em
União. Para chegar ao pé da Serra da Barriga, levamos mais de uma hora de
viagem. Caminhada e carona em carroceria de caminhão de usina de cana de
açúcar. Daí então aquele incrível exército de Brancaleone subiu a mata cerrada
rumo ao topo do Morro.
A subida na Serra de mata
fechada foi literalmente espinhosa. Repleto de macaquinhos. Os galhos das
árvores e arbustos nos agrediam, nos machucavam, principalmente na cabeça. Um
único que se safou dessa espinhada foi Janjão que estava com seu capacete do
exército.
SOLDADO MALTA,
HERÓI DO NOSSO GLORIOSO
João Carlos Malta, o
maior da turma, acabara de servir ao nosso glorioso exército no quartel do 20o.
BC como recruta. Ele era um abacaxi para os oficiais de plantão. Indisciplinado,
desajeitado, inepto, bronco, atrasado, lerdo... tudo que um oficial não queria
como soldado. Cumpria aquela tarefa de serviço militar obrigatório com absoluta
falta de motivação. Era tratado a ferro e fogo.
Na marcha do pelotão era
reborreia, o último da fila embora fosse o mais alto. Um peido fora de hora era
na certa uma prisão. Um alivio para os superiores. Ele então tocava fogo no
colchão, o jeito era soltá-lo. Caos no 20o. BC, o batalhão não sabia o que
fazer com Janjão. Caso perdido e insolúvel. Mas aquela cara de leso escondia
uma esperteza fora do comum.
Era tratado pelos
superiores como o cocô do cavalo do bandido. Botavam ele para cumprir as
missões mais elementares possíveis. Num treinamento de fogo pesado, no Vale do
Rio Reginaldo, atrás do quartel, Janjão ficava deitado ao lado da bazuca que
lançava granada catando os restos da mortalha que eram jogados por perto. Para
um soldado vibrador, uma humilhação.
Pois bem, num treinamento
desse, toda a companhia perfilada atrás da bazuca para assistir as granadas
serem jogadas alhures, o soldado Malta deitado ao lado dela, mais leso do que
nunca, viu na sua frente um foguinho, que foi apagado imediatamente com seu
capacete. Estava ali para isso. Cumpridor de seu dever cívico.
Janjão olhou para trás,
não tinha um, meu irmão. Do major ao recruta mais raso, todos tinham corridos
quando viram a bazuca dar xabu e jogado a granada juntinho ao Janjão. O soldado
Malta tinha mesmo era evitado a explosão do artefato. Vendo-se sozinho naquele
deserto de pessoa pensou: “morri”. O sargento, o menos cagão da tropa, veio
correndo em direção ao Janjão. Ele pensou novamente: “o sargento também
morreu”.
Como dizia meu guru
Millôr "herói foi aquele que não teve tempo de correr". O batalhão em
peso que tinha dado no pé voltou com louvores ao nosso herói soldado João
Carlos Malta. Aí o coronel comandante perfilou todo o batalhão, com os
convidados habituais, autoridades puxa-sacos da ditadura, fez um discurso de
três laudas enaltecendo o heroísmo do soldado exemplar, " imagem de nossa
Revolução ", e chamou Janjão para proferir comentários sobre o ato
glorioso. Ele foi lacônico:
- Vi um foguinho na
frente e apaguei. Se eu visse todo mundo correndo, eu também corria, que não
sou besta!
- Soldado Malta, você é
um BOSTA, bramiu o coronel, acabando com a cerimônia ufanista.
A SURPRESA
Foi Janjão quem estava na
frente da subida na Serra, protegido pelo famoso capacete que desativou a
granada, e deu a notícia que tínhamos chegado ao cume. Todos então saíram
imediatamente à procura do lago auspicioso. Alguém gritou “aqui tem água”.
Todos correram para o lugar para conferir a descoberta. Não demorou muito para
constatar que o lago procurado não passava de um poço raso com menos de um
metro de diâmetro.
Decepção generalizada. Passamos imediatamente
de promitentes jovens abastados para desiludidos e irritados meninos tendo de
carregar as tralhas de mergulho de volta na caminhada. Menos Janjão, que não
fazendo fé no nosso sonho, caiu na gargalhada gostosa. Lembram do Pateta da Disney
sorrir? Igual.
Restavam-nos sentar, e
traçar sanduíche de mortadela acompanhado de vinho de garrafão. Tínhamos que
nos apressar pois estava chegando a hora do trem de volta. Andamos, andamos,
andamos, só enxergando mata e macaquinhos, quando damos fé estávamos olhando os
mesmos macacos no mesmo lugar. Caminhando em círculos. Perdidos. E agora? A
hora do trem e a noite chegando.
Nosso protagonista com
sua esperteza berrou: “é por ali!”. Janjão estava nas palhas de um alto
coqueiro onde enxergava as saídas do Morro. Esse sim, o verdadeiro herói do
exército dos pequenos Brancaleones, pois já era tardinha e se a noite chegasse
seríamos devorados pelos mosquitos quilombolas.
FESTINHA DE NATAL DE UMA
CIDADE DO INTERIOR
Claro que quando chegamos
à cidade de União dos Palmares o trem para Maceió já havia partido há muito
tempo. Tínhamos a grana das passagens de trem de volta e fazendo uma vaquinha
deu mais alguma merreca. Não dava nem pra meio sanduíche para cada.
Era dezembro, período das
festinhas de Natal. O povo na rua. Pastoril, reisado, chegança. Com uma fome da
gota, passávamos pelas barracas daquelas comidas apetitosas e virávamos a cara.
Quando deparamos com a barraca de bazar, André Simon pediu a merreca que sobrou
para fazer uma fezinha na roleta. Última esperança de um grupo desesperado,
esfomeado, fedido, rejeitado pela população e desapontado pela perda de uma fortuna
que acabara de escorrer pelos nossos dedos. Diante disso, fomos uníssonos
“capricha, André”.
Ele jogou a metade da
grana no numero 17. O dono girou a roleta espiando para a gente como otários de
cidade grande, incentivando-nos continuar jogando, depois do resultado
negativo. André arriscou o resto da merreca no mesmo numero. “Macaco não é
valente/ deu 17 na corrente”. Ganhamos uma bolada boa. O dono ficou chiando por
não continuarmos a jogar, ele não dava para encarar onze caras, e tínhamos uma
espingarda na mão trazida por Denis Simon.
Fomos direto para a
barraquinha de cachorro-quente, que é sem dúvida a melhor comida de festinha do
interior. Aquele sabor caprichado de cominho na carne moída bem temperada é de
comer ajoelhado. Lavamos a égua, tiramos a barriga da miséria.
O próximo trem para
Maceió só passaria na madrugada. Ficamos fazendo hora na festinha, até achar um
lugar para o descanso merecido depois de movimentada aventura. Para não perder
o trem novamente escolhemos os dormentes do trilho do trem perto da estação
para deitar.
Como estávamos com os
equipamentos de mergulhos não queríamos deixa-los de bobeira, de meia em meia
hora, um ficava de guarda com a espingarda que carregávamos. Não precisa dizer
que na vez do Janjão, ele botou a espingarda entre as pernas, cochilou, e num
gesto involuntário disparou a arma. Foi um deus-nos-acuda. Dalí a pouquinho
chegaria o trem. Não necessitava acordar ninguém. Estavam todos ralhando com
nosso herói, que respondia com sua gargalhada prazerosa. Um retrato daquele
tempo inesquecível.
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